COMENTO ESPIRITUAL Á
PRIMEIRA CARTA DE JOÃO
Primeira condição: romper com o pecado
(1, 8-2,2)
O tema fundamental da
primeira carta a João é oferecer as condições para averiguarmos a nossa
comunhão com Deus. O primeiro critério é o reconhecimento do próprio pecado. O
encontro com Deus, em Jesus Cristo, nos ajuda a tomar consciência do nosso
pecado. Toda vez que deparamos com a santidade de Deus, percebemos a nossa diversidade.
a. È a experiência de Isaias:
Is
6 1-5.
b. Cf a experiência de Pedro: Lc
5.
c.
Nessa altura é significativa a experiência do jovem rico (Mt
19, 15-22).
d. Também, os apóstolos,
neste sentido, não manifestaram uma atitude melhor: Lc 14, 7; Mt 16, 23.
e.
Lc 7, 36-48: Simone não consegue entender o perdão de Deus.
f.
Os fariseus: hipocrisia denunciada em Mt 23.
O primeiro elemento da
comunhão com Deus é o desvendamento do nosso coração, o fato que o nosso
coração vem reconhecido por aquilo que é. Ficando na frente de Deus aparecem os
meus pecados, os meus limites, as minhas misérias (por isso a pouca vontade de
rezar, a fatiga na oração, o cansaço. Por outro lado, quando vejo o meu coração
limpo mi dá vontade de permanecer perante o Senhor). Não querer ver o próprio pecado, não querer
reconhecê-lo é uma maneira de defender a si mesmos, de se justificar, é querer
ficar do lado da verdade. Este é um dos elementos que estragam uma caminhada de
fé: querer ter razão.
Se dentro o nosso coração
como espelho da nossa vida temos a opinião comum, então dificilmente me percebo
como pecador. A nossa comparação, pelo contrario, deve ser com o Senhor Jesus:
então saímos sem duvidas com vencidos, errados.
“Se confessarmos os nossos pecados...”[1].
Não apenas Deus tira, perdoa os nossos pecados, mas Deus nos libera daquela
tendência que existe em nós, no profundo do nosso coração: a tendência ao
egoísmo, á auto-suficiência no confronto de Deus; Deus nos tira toda raiz do
mal[2]
.
“Se dissermos que não pecamos, fazemos dele um mentiroso”[3]. Porque? Porque a palavra
de Deus acusa o homem do pecado (cf Rom 3, 9-18). Se dissermos que
não temos pecado, com Cristo fazemos o que? Se o sentido da vinda de Cristo ao
mundo é tirar os nossos pecados, então o primeiro fruto do nosso encontro com
Ele é isso mesmo , ou seja a confissão do nosso pecado. Se Cristo faleceu por mim, quer dizer que sem
Ele eu sou perdido.
“Temos um advogado junto do Pai”[4].
O intercessor é Jesus Cristo. Agora temos um intercessor perto do Pai, santificado
pela sua obediência, pela dedicação total á vontade do Pai e, por isso, pode
elevar uma oração fiel, crível, aceitável por Deus. Dois textos ajudam a
entender isso:
Rom 8,34;
Hb 7, 24-25; 5,7s.
Existe em Jesus uma
capacidade de expiação dos pecados que é maior dos nossos pecados. Jesus é
maior do que nós, a redenção de Jesus é maior dos nossos pecados, aliás, é
maior dos pecados do mundo todo. Nós não somos tão grandes pra podermos
realizar pecados imperdoáveis, que impedem a Deus de operar com a sua
misericórdia.A expiação de Jesus lava os pecados do mundo todo.
Segunda condição: observar os
mandamentos, sobretudo o mandamento do amor
a. Caminhar como Jesus caminhou (2, 3-6)
O verbo (observar) quer
dizer não uma simples observância externa, mecânica, mas a ponta para uma
obediência ativa[5],
dócil, pronta, uma observância feita pelo coração e que necessariamente deve ir
junta com o amor.
“Mandamentos dele”: A importância dos mandamentos é isso: A
proveniência é Deus e nos leva a sua vontade, nos leva perante a sua pessoa.
Somos convidados a observar os mandamentos enquanto são expressão do amor desta
pessoa chamada Jesus Cristo[6].
È o amor para Jesus Cristo
que me permite de observar os seus mandamentos. Esta ligação entre Jesus e o
amor para os seus mandamentos a encontramos amiúde em João: Jo 14, 15. Não é
possível amar a Jesus sem observar os seus mandamentos. Este ligação intrínseca
a encontramos também no A.T., de uma forma especial no livro do Deuteronômio[7].
Amar a Deus significa servi-lo[8].
Se Deus nos olhou com um amor especial, de predileção, significa que devemos
responder a este amor.
Também em Lv 19,2 se
encontra uma palavra parecida com aquela de Dt 10. Se temos Deus como nosso
Deus, devemos nos comportar como seu povo, como seus amigos. Ser em comunhão com
Deus leva consigo a obrigação de sermos dignos dele. Nessa altura percebemos
que acontece com Deus aquilo que acontece em qualquer relacionamento humano de
amizade. Pra fazer amizade com uma pessoa precisamos aprender a aceitá-la assim
como ela é. O Senhor faz isso conosco, ou seja, nos aceita assim como a gente
é. Se o Senhor nos aceita do jeito que somos, devemos também nós aceitar o
Senhor do jeito que Ele é.
Então observar os
mandamentos de Deus não significa simplesmente observar uma lei, mas aceitar
uma pessoa, através aquela lei, aceitar a presença de Deus na nossa vida. Todos
os mandamentos se resumem na Palavra de Jesus[9].
“Aquele que diz que permanece nele, deve também andar como ele andou”[10].
Jesus se torna o modelo do comportamento cristão. Viver como cristão significa
olhar o Senhor e imitá-lo[11].
Para entendermos isso é preciso lembrar o texto dos lava pés[12].
Os lava pés são uma antecipação, uma profecia daquilo que teria acontecido um
pouco mais tarde, ou seja, a morte de Cristo na cruz. Fazer aquilo que Jesus
fez significa fazer da nossa vida um serviço, seguindo Jesus na sua paixão. É
por isso que no N.T. o tema da imitação a Jesus desemboca no tema do
sofrimento, da paixão. Alguns textos são importantes para entendermos melhor
este assunto[13].
O amor de Deus, a presença
do Senhor, a entendemos quando fazemos a experiência dele, na comunhão[14].
João expressa a comunhão
com duas expressões: ser em Jesus e permanecer nele. Pra ter fé precisa ver
Jesus, precisa crer, conhecer, amar e permanecer nele. Para o discípulo a vida
quer dizer permanecer perto de Jesus[15].
Se acolhermos na Eucaristia a vida que vem de Jesus, a nossa vida não vem mais
do mundo, mas sim de Jesus. Nós vivemos por aquela força que Cristo nos doa,
através daquela vida que Cristo nos oferece. Por isso não podemos mais viver só
para nós mesmos, mas para Deus. “Quem
come de mim viverá por mim”[16].
Através da fé na Eucaristia o homem perde o seu centro, não é mais ele o
centro da sua vida. O fruto de uma vida Eucarística é a saída do próprio
egoísmo, daquela doença espiritual que afeta o homem que é a auto-suficiência,
a busca da autonomia, não como sinal de liberdade, mas sim como desejo de uma
vida sem Deus. O cristão recebe a vida continuamente por Cristo, e a restitui
continuamente para Cristo[17].
NO relacionamento com Deus através de Cristo, o homem aprende a se colocar, a
não pensar de ser o artífice da própria vida, de ser o criador de si mesmo.
Quando uma pessoa chega a manifestar-se desta forma, quer dizer que perdeu
totalmente o sentido da realidade. E tudo isso com aquela totalidade que
caracteriza a vida de Cristo: como Jesus é totalmente dedicado ao Pai, e não
consegue viver fora da perspectiva dele, assim o cristão é totalmente dedicado
a Cristo e não consegue viver fora da perspectiva de Cristo. Por isso João
gosta muito do verbo “permanecer”,
pois resume a experiência cotidiana do cristão que é um permanecer em Cristo, é
atingir em Jesus a fonte da nossa vida.
Neste sentido é
extremamente significativa a alegoria da videira que se encontra em Jo 15.
Jesus é a origem da vida dos discípulos. È nele que recebemos a nossa existência.
Na carta a João o fruto que o cristão deve produzir é a caridade. Quando a vida
do discípulo se torna amor, então está produzindo fruto. Também podemos folhar
outros textos significativos para entendermos melhor este assunto[18].
A Verdade[19] se torna, para João, o
principio, a fonte das ações do cristão. Aquilo que o cristão pensa, aquilo que
o cristão vive e decide deve sair da Verdade. Em João a Verdade tem a função
que em Paulo tem o Espírito. O Espírito era em Cristo, e o fazia viver e pensar
como Cristo, era a sua postura interior. Agora o Espírito é doado aos cristãos
e se torna a origem da sua vida.
“A Verdade vos libertará”[20]:
nos libertará do nosso egoísmo, de todos os condicionamentos culturais,
ambientais, nos libertará da necessidade de aparecer ao mundo. Nos libertará de
uma maneira que as decisões que tomamos não são condicionadas dos nossos
caprichos, mas tem como única origem o amor, a verdade[21].
“Quem observa as suas Palavras, nele o amor de Deus é
verdadeiramente perfeito”[22].
Isso quer dizer que demonstramos o nosso amor para o Senhor no momento em que
vivemos conforme a sua Palavra. Além disso, este versículo que estamos
comentando, tem um outro sentido, ou seja, o amor de Deus não é apenas o amor
que nós temos para Deus, mas também o amor que Deus tem para nós. Quando
vivemos os mandamentos de Deus, o amor que Deus tem para nós torna-se perfeito.
De fato, quando nos amamos uns aos outros nós estamos abrindo o nosso coração a
Deus.
O amor do Pai, passando
através do homem Jesus, fez com que este homem Jesus, amasse com o mesmo amor
do Pai. A amor de Cristo, chegando a nós, passando através de nós pode fazer
com que nós vivamos como Jesus viveu, caminhemos como ele caminhou.
b. O mandamento novo (2,7-11).
“Mandamento antigo que recebeste desde o inicio”[23]:
a referencia é ao batismo, que marca o inicio na vida de um cristão. João não
quer dizer algo de novo, pois a vida cristã é fidelidade ao batismo, é
fidelidade a Jesus Cristo. É um mandamento que ao mesmo tempo é novo porque é
uma realidade escatológica, ou seja, definitiva, que dura para sempre. Isso
quer dizer que não existe nada além do amor. É um mandamento velho porque os
cristãos o conhecem desde o dia do batismo; mas ao mesmo tempo é um mandamento
novo porque nunca é superado. É um mandamento que se torna novo em Cristo,
porque o amor com que Cristo amou é algo de novo no mundo[24].
Aonde existe o amor fraterno, ali Cristo está presente. Não então um amor que
sai simplesmente do coração humano, mas é um amor que sai da presença de Cristo
no coração do homem. O amor que Jesus tem por nós, tem como objetivo que nos
amemos uns aos outros. Jesus nos ama para que o seu amor nos mude, modifique as
nossas atitudes egoístas. Cristo nos ama para nos envolver no seu amor, para
nos transformar com o seu amor.
Uma pessoa pode até ter
praticado o amor; só que o amor fica sempre na nossa frente, pois é algo que
devemos conquistar a toda hora. Quando Paulo fala do amor[25]não
diz que é um dom, um carisma, mas um caminho. Isso é significativo, porque nos
revela que no caminho do amor nunca podemos dizer que chegamos, nunca podemos
sentar, mas sempre somos a caminho, pois a realização do amor verdadeiro está
sempre na nossa frente[26].
Então se este mandamento
se tornou verdadeiro em Cristo e em nós, então é por isso que as trevas estão
sumindo e a luz verdadeira resplandece. Pode ser verdadeiro que o mundo
continua indo em frente com o seu egoísmo e com a sua violência. No mundo,
porém, existe também Cristo, o anuncio do Evangelho, a vida fraterna dos
cristãos. Perante esta luz as trevas estão rarefazendo-se[27].
Aonde o evangelho é anunciado, aonde é presente o anuncio do amor de Deus, as
trevas começam a sumir e aparece a luz. No tempo presente trevas e luz
convivem. Se continuam as trevas no mundo, tem porém ao mesmo tempo a luz. Se
uma pessoa quer ser na luz deve ser no amor. Aonde não tem amor tem ódio: somos
obrigados a escolher. O ódio é treva. O ódio acha de defender a si mesmo, mas
na realidade, é um caminho de destruição de si mesmo.
Aonde existe a caridade
não tem ocasião para tropeçar. A fé se expressa na caridade e a caridade
aumenta a abertura a Deus. Se quisermos amadurecer no nosso relacionamento com
o Senhor como relacionamento de fé, se quisermos que a comunhão nos fortaleça,
o caminho é a caridade, a pratica do amor.
Terceira condição: guardar-se do mundo
a. Exortação para os cristãos (2,
12-14).
A comunhão com Deus
consiste também em se proteger do mundo. É preciso escolher entre o amor de
Deus e o amor do mundo[28].
Filhinhos: somos todos
nós, todos os cristãos. São remetidos os pecados. Este é o tema da primeira
pregação cristã no Evangelho. Se nos foram remetidos os pecados isso quer dizer
que somos livres do nosso passado. Então o nosso futuro, o nosso relacionamento
com os irmãos e com Deus não é mais condicionado por ninguém. É verdade que
vivemos todos os dias num contexto social, político, econômico, familiar que de
uma certa forma nos condiciona. NA realidade, porém, é somente Cristo que, ao
longo dos anos deve condicionar e dirigir o nosso pensamento e os nossos atos. O Senhor reconstruiu o nosso coração[29].
Isso quer dizer que também da nossa historia de pecado Deus sabe extrair algo
de bom, ou seja, a conversão, o sentimento de pobreza perante Ele, a humildade.
Por isso é preciso acolher com alegria o Seu perdão, pois é um anuncio de
libertação.
Esta expressão: “Vossos pecados vos foram perdoados”[30]
resume toda a vida de Jesus. Quando depois da ressurreição Jesus apareceu aos
seus discípulos Jesus os envia[31].
O discípulo é um mandado, então um que não tem uma autoridade própria. Tudo
aquilo que o discípulo diz o aprendeu por Jesus. Só desta maneira o discípulo
tem autoridade. De fato, quando o discípulo prega si mesmo, não tem autoridade
e moral nenhuma. É claro que pra fazer isso, para fazer aquilo que Jesus fez,
não basta a nossa boa vontade[32].
Por isso Jesus soprou sobre eles o Espírito Santo[33].
Então “a quem perdoardes os pecados lhes
serão perdoados”[34].
Tudo aquilo que os discípulos são convidados a fazer se resume neste poder, que
é o poder de Jesus de perdoar os pecados, de doar aos homens a vida.
“Por meio do seu nome”[35].
Sendo que somos chamados com o seu nome não somos pessoas perdidas, somos o
povo de Deus, temos o seu nome que nos foi entregue no dia do batismo. Receber
o nome de Cristo significa passar de propriedade, quer dizer adquirir uma nova
família.
“Escrevo a vós, pais: conheceis aquele que é desde o principio”[36],
ou seja, conhecestes Jesus Cristo. Os pais são aqueles que fizeram uma longa
caminhada. O caminho do amadurecimento espiritual requere tempo, paciência.
Conhecer Jesus Cristo: não
é apenas um dado intelectual, mas que envolve toda a pessoa. Cf. Fil
3, 7-11: conhecer Jesus Cristo significa que Ele se torna a segurança
da nossa vida, todo o resto não consegue
mais me atrair. Para chegar á plenitude do conhecimento, é preciso conhecer a
ressurreição de Cristo dos mortos, participando também dos seus sofrimentos.
O coroamento da fé é no
conhecimento[37] e
o conhecimento é amizade com Jesus, é passar de servo para amigo. Tudo se
resume no conhecimento. A vida eterna é conhecimento[38]:
então é experiência e comunhão. O Senhor não pode ser uma simples idéia, mas um
amigo familiar. Sou seu discípulo, então o escuto, o entendo, o aceito. Podemos
acrescentar que a comunhão com Jesus é obra do Espírito Santo, pois é o
Espírito que permite ao cristão de aprofundar o seu relacionamento e de chegar
a este conhecimento[39].
O Espírito Santo nos abre para o conhecimento
de um mundo novo, que nasce da morte e ressurreição de Jesus. Entender
que vale a pena perdoar, significa entrar na nova maneira de raciocinar.
“Eu vos escrevo, jovem, porque venceste o Maligno”[40].
É típica da juventude a luta. A vida cristã é feita de lutas, fadigas,
sofrimentos, riscos. A luta acontece, sobretudo no começo, apesar e ser sempre
presente na vida cristã. São Paulo o descreve muito bem na carta aos Efesios[41].
É uma luta contra forças que são mais fortes do que nós e não temos nenhuma
chance de resistir com a nossa inteligência e com as nossas forças. Tomamos,
então, a armadura de Deus. Os jovens não devem temer, pois a vitória é certa,
sendo que Jesus já derrotou o inimigo. “Esta
é a vitória que venceu o mundo: a vossa fé”[42]
. A vitória dos cristãos reproduz a vitória de Cristo[43].
v. 14: A capacidade de
resistir na luta e de vencer é ligada por João com a Palavra de Deus. Sendo que
tendes a palavra de Deus, e esta Palavra permanece em vós, então já vencestes.
É importante parar um pouco, para refletirmos sobre o valor da Palavra.
Hb 11,3: A Palavra de Deus Criou
o mundo.
Sab 18, 14-17: a Palavra é poderosa.
Jer 23,29: a Palavra é como um
fogo, um martelo que despedaça a pedra.
2Tim 3,14-16: toda palavra é inspirada
por Deus.
“Não ameis o mundo”[44].
Se antes amávamos o mundo, agora não devemos mais amá-lo.
b. As três concupiscências ( 2,15-17).
Mundo: em primeiro lugar é preciso dizer que mundo, nos textos de
João, não aponta para um espaço físico, um lugar, mas sim para uma situação
espiritual. Se não fosse assim seria uma contradição. De fato como é que Deus
primeiro cria o mundo e depois o despreza? Mundo é, então, a criação que vive
separada de Deus, sem o relacionamento com Deus, pois o relacionamento com Deus
é a dimensão fundamental da experiência cristã. O mundo é aquela realidade
apoiada sobre o maligno, aquele espaço cujo príncipe não é Deus, mas sim o
diabo[45].
O mundo é o conjunto de todos os bens passageiros que são oferecidos aos
homens. Existe a tentação constante para o homem de amar o mundo, de apegar-se
as coisas mundanas. Porque isso? Porque o homem é radicalmente frágil, é uma
pobre criatura, é condenado a morrer desde o dia do seu nascimento. O homem precisa de tudo pra viver. Nesta
condição o homem pode fazer o que? Defender-se, buscar proteção, amparo, etc. [46].
Ande o homem encontra esta proteção? No mundo. O dinheiro, por exemplo. As
coisas são uma segurança (o mosteiro pode se tornar uma segurança material,
sobretudo neste contexto). O problema é que o mundo passa com a sua
concupiscência[47].
É preciso, então, vigiar sobre os desejos e os medos que temos. O problema
nessa altura é o seguinte: como podemos vencer a sedução do mundo?
“Se alguém ama o mundo, o amor do pai não está nele”[48]. Aquilo que garante o
homem é o amor do Pai. De fato o Pai garante o homem perante o futuro, perante
os outros, perante a morte, perante os seus fracassos, os seus pecados, pois
Deus é maior dos nossos pecados. Se o amor de Deus está em nós, não precisamos
mendigar seguranças. Aliás, no ser amados por Deus, encontramos a paz[49].
V. 16. Existem três maneiras através das quais se expressa o amor
do mundo.
Antes de tudo podemos
dizer, do ponto de vista geral que a concupiscência se manifesta como vontade
de viver ao contrario a realidade de Deus.
A primeira maneira é a concupiscência da carne. É a
postura de quem enxerga tudo como instrumento por sim, pelo seu sucesso, pela
sua satisfação. Para entendermos melhor isso precisamos folhar as paginas de
Paulo. Gal 5, 16-21: a lista começa com três palavras que se referem a
sexualidade: fornicação, impureza, libertinagem. Aqui a sexualidade se torna
busca do próprio prazer e não dono de sim[50].
Depois tem duas palavras que falam da religião, aliás a deformação da religião.
Aqui a religião torna-se um meio para se servir de Deus[51].
Depois o texto segue com uma serie de sete palavras que são relacionadas aos
irmãos.
A segunda é a concupiscência dos olhos. É a vontade de possuir,
a avareza, de querer pra si tudo aquilo que se vê. Santo Agostinho[52]
afirma que a concupiscência dos olhos é a curiosidade: a necessidade de fazer
todas as experiências.
A ultima é o orgulho da
riqueza. Quando uma pessoa possui riquezas não percebe mais que é um pobre
homem, que deve acolher a salvação como um dom e que não pode adquire-lo. O
livro de Ezequiel descreve muito bem esta situação, na famosa historia de Tiro[53].
Por isso o evangelho fala que a riqueza é um perigo enorme no reino de Deus[54].
De fato, a riqueza tende a render o homem auto-suficiente. Pode acontecer como
na parábola contada no evangelho de Lucas[55].
No final de conta, aquilo que vale é exatamente aquilo que somos perante Deus.
O centro da nossa vida deve ser constantemente Deus. Paralelamente ao acumular
o dinheiro, existem outras posturas parecidas: acumular a estima dos homens,
gratificações. Somos pobres pessoas, e nos apegamos a tudo. Quando desfalece a
confiança na proteção de Deus, o homem busca a proteção em outros lugares. A
experiência do mundo não deve se tornar o todo. Devemos aprender a viver cada
experiência aberta a Deus. O mundo não é o tudo do homem. O tudo do homem
permanece Deus, só e exclusivamente Deus. Quando o mundo ocupa o nosso coração,
não tem mais espaço para Deus. Por isso vale aquilo que Jesus dizia: aonde é o
teu tesouro lá é o teu coração[56].
É claro que tudo é bom
pois tudo é criação de Deus. O problema é que se as coisas são dom de Deus
devem ser vividas como dom de Deus. Então é o Senhor que buscamos, também
através das coisas, das quais precisamos pra viver, sem ligar o coração.
Quarta Condição: guardar-se dos
anticristos (2,18-27)
“Esta é a ultima hora”: é o tempo no qual precisamos
vigiar[57].
Precisamos ser prontos para acolhermos o Senhor que vem. O pecado pior que pode
acontecer conosco é adormecer, como as virgens estultas[58].
Neste contexto espiritual é preciso olhar para frente. Esta vigilância deve ser
exercida, sobretudo no confronto dos anticristos. Também Paulo falava disso[59].
O tempo presente da comunidade de João era um tempo de confusão, aonde varias
tentativas eram feitas para confundir a verdade[60].
Anticristo: Cf. Ap 13. Seja o que for o anticristo designa uma oposição a Cristo. A
presença de muitos anticristos revela, segundo João, a aproximação do fim deste
mundo. O tempo no qual vivemos é orientado para um mundo novo[61].
O sofrimento maior deriva da constatação que estes anticristos não vem de fora,
mas saíram do meio da comunidade, ou seja, são cristãos que pertenciam a
Igreja.
“Nem todos são dos nossos”: existe uma pertença a Igreja puramente
exterior, puramente física, puramente superficial, que não expressa a
verdadeira pertença. Se uma pessoa é batizada, nem por isso quer dizer que seja
Católica[62].
Para que uma pessoa seja dos nossos, é preciso que dentro, no coração, seja
acontecida uma conversão, uma transformação.
É na hora da tentação que
se verifica a verdade da nossa pertença a Igreja.
“Vós, porém, tendes recebido a unção”[63]:
a unção são duas coisas juntas: a Palavra e o Espírito Santo, a verdade e o
Espírito. Nós recebemos de Cristo a Palavra e o Espírito. A Palavra de Deus se
torna a nossa carne e o nosso sangue. Por meio do Espírito, aquilo que lemos no
Evangelho se torna nossa carne e sangue, da maneira que nós mesmos nos tornamos
com a nossa vida Palavra de Deus. Pelo fato que recebemos a Palavra com a força
do Espírito, nós agora temos a ciência, ou seja, a capacidade de discernir o
verdadeiro do falso, a verdade do erro. Existe uma sensibilidade típica do
cristão que lhe permite de orientar-se na vida, que lhe permite de avaliar as situações,
e de entender para onde deve ir. Nestes casos nós temos a ciência.
“Nenhuma mentira procede da verdade”: a Verdade é Jesus Cristo, o
Filho de Maria, que nasceu em Belém, viveu em Nazaré, pregou perto do mar da
Galileia, percorrendo as estradas da Terra Santa: este é Jesus, um homem
concreto. Além disso, a fé nos diz que este homem concreto é o Cristo, ou seja,
a realização de todas as promessas de Deus no A.T.. Cristo é a revelação
perfeita de Deus, a manifestação plena da realidade, do coração, do pensamento
de Deus. Este é o grande paradoxo que cria dificuldade as mentes dos homens:
que o Deus eterno possa ser limitado em um homem, que o eterno entre no tempo
finito dos homens. Este é o escândalo, difícil de engolir. Este escândalo
golpeou antes de tudo, os mesmos moradores de Nazaré[64]:
escandalizavam-se pela sua humanidade. Aquilo que conheciam de Jesus era motivo
de tropeço para eles, impedia a eles de acreditar: é o escândalo da carne.
Quando o Verbo se faz carne, o homem deve superar o véu da fraqueza, para
reconhecer a força e Deus[65].
Para conhecer Cristo é preciso ir além das aparências, além da carne, além da
fraqueza humana de Jesus. É preciso entender que conhecer a Jesus é conhecer o
Pai, assim como odiar a Jesus é odiar o Pai. A fé acredita que Jesus é a
revelação plena de Deus, então é o sentido profundo do mundo. Se Jesus é o
Filho e Deus então podemos dizer com João que Deus é amor[66].
Que Deus é amor o entendo olhando a cruz de Jesus: este é o sinal do amor de
Deus. Um Deus que se faz carne, que toma sobre de si a minha fraqueza, que
partilha a pobreza da minha condição, que sofre como eu sou capaz de sofrer,
que conhece a angustia da morte, manifesta plenamente o seu amor para com o
homem[67].
Um Deus assim é sem duvida um escândalo e até os discípulos, na hora da paixão,
ficaram escandalizados[68].
Pela pessoa que ama a
postura fundamental não é mais a defesa de si mesmo, mas é a vida do outro;
então a pessoa que ama tende devagarzinho a tirar as autodefesas, se torna
frágil, vulnerável. Esta fraqueza se chama fraqueza do amor. O amor é fraco,
mas ao mesmo tempo é tenaz, pois é capaz de superar qualquer obstáculo, também
a morte. É por isso que em Jesus encontramos a revelação do amor de Deus.
VV. 22-23: Se Jesus não é o Filho de Deus, Deus não é mais o Pai! Deus
não é mais amor! Se negarmos Jesus, não teremos mais o Pai. O problema é colher
que Jesus vem do Pai, que é esta a sua origem, a sua verdade.
VV. 24-25: “Procurai que
permaneça[69]
em vós aquilo que ouviste desde o principio[70]”:
no confronto de Paulo, João sublinha mais a importância da interiorização da
palavra. O Evangelho é dentro de nós: devemos conservá-lo, guardá-lo dentro. A
Palavra deve crescer dentro de nós, deve se tornar minha carne[71].
VV. 28-29: O tempo presente é o tempo da ausência de Jesus. Existe uma
vinda do Senhor que nós esperamos. Esta espera incide no presente: agora
vivemos em função daquela vinda. Agora é o momento da vigilância, é o momento
em que devemos praticar as obras da caridade. Quando o Senhor verá serão estes
talentos da caridade que Ele cobrará de nós. Faz parte da experiência cristã a
espera do futuro[72].
Enquanto esperamos que o Senhor venha, nós andamos ao seu encontro com uma vida
perfeita na caridade. João nos convida a fazer a experiência do Senhor para
podê-lo reconhecer no dia da sua vinda.
Os anos que temos pra viver nesta terra servem para nos colocarmos em
sintonia com Ele. Se permanecermos em comunhão com Cristo desde agora a vida
eterna será só uma mudança de substancia, de modalidade. Devemos viver agora na
maneira que o encontro com o Senhor não queira dizer sermos difamados [73]
.
[1] 1 Jo 1, 9.
[2] Cf Ez 36, 26s.
[3] 1 Jo 1, 10.
[4] 1 Jo 2,1.
[5] Cf. Rom 16,26.
[6] Nisso está o fundamento da ética cristã, que não é fruto do mero
esforço humano, mas sim, participação da vida divina em nós por meio dos
sacramentos. Não basta, de fato conhecer os mandamentos para realizá-los:
precisa da graça de Deus que age em nós para ajudar-nos a viver o amor. Neste
sentido a ética cristã é bem diferente da ética filosófica. Sócrates, por
exemplo, achava que para o homem bastava conhecer o bem para realizá-lo. A
experiência corriqueira nos alerta que na realidade, o homem não consegue
realizar o bem que percebe e conhece. É aquilo que Paulo sustenta na carta aos
Romanos (7, 14s.)quando fala que o homem conhece o bem mas não consegue fazê-lo
porque está dominado pelo pecado. É necessário que Cristo entre na vida do
homem e da mulher para que os seus mandamentos sejam realizados. É claro que
não podemos também cair no erro oposto, ou seja, num determinismo sacramental
como se bastasse participar dos sacramentos para santificar a nossa vida (cf.
Lúmen Gentium 14). O homem, a mulher deve fazer de tudo para que a graça de
Deus possa agir na nossa humanidade e transformá-la. Quem aprofundou este
assunto foi Santo Agostinho. Foi ele que percebeu na vontade uma faculdade do
ser humano, uma faculdade estragada pelo pecado. Por isso, mais uma vez, para
viver a caridade é necessário Cristo. E é por essa razão que são João na sua
primeira carta bate sempre na mesma tecla, ou seja, a prova que Cristo está em
nós é a nossa vivencia do amor, pois somente Cristo viveu o amor de uma forma
perfeita, somente a sua humanidade resistiu á tentação do pecado, que empurra o
homem para o caminho do egoísmo e do ódio de se mesmo e dos outros.
[7] Cf. Dt 10,15.
[8] Cf. Josué 24: a Assembléia de Siquem.
[9] Nessa altura podemos falar do sentido da aliança como compromisso
entre dois parceiros. Quando um dos parceiros é Deus o conteúdo da aliança é a
promessa que, para ser alcançada, exige o respeito da mesma aliança (cf. Gen
12, 1-4; Ex 24; 32).
[10] 1Jo 2,6.
[11] V. Losky acha que seja esta a diferença entre a mística católica e
a mística ortodoxa, mais voltada para a contemplação (cf. ).
[12] Cf. Jo 13, 12-15.
[13]Cf. Fil 2,5-8; 1Pd2, 21; Cor 11,1.
[14] Cf. Jo 10.
[15] Cf. Jo 1,39s.
[16] Jo 6,57.
[17] Cf. Jo 5,26.
[18] Cf. Gal 5,22; Jo 17,26.
[19] “O sentido característico de aletheia no Quarto Evangelho significa
a realidade eterna enquanto revelada aos homens, seja a realidade em si, seja a
revelação dela... É a verdade o conhecimento da realidade, que vem por meio de
Jesus Cristo” (cf. Dodd, cit. Pp.237-238).
[20] Cf Jo 8,32.
[21] Na reflexão de Ratzinger a Verdade cristã se identifica com o amor.
Pra ele este é um dos dados mais elevados do pensamento cristão (cf. ).
[22] 1Jo 2,5.
[23] 1Jo 2,7.
[24] Cf Jo 13, 34-35.
[25] Cf 1 Cor 12,31.
[26] Cf. também: 1Ts 3,12.
[27] Cf Rom 13,12.
[28] Cf. Rom 8. Neste sentido permanece sempre interessante e cheia de
sentido a carta a Diogneto, in modo especial o capitulo 5.
[29] Cf. Ez 36.
[30] 1Jo 2,12.
[31] Cf. Jo 20,20-21.
[32] Cf. Rom 7, 14-8,39.
[33] Cf. Jo 20,22.
[34] Jo 20, 22.
[35] 1Jo 2,12.
[36] 1Jo 2,13.
[37] Cf. Jo 8, 31-32
[38] Cf Jo 17,3
[39] Cf. Jo 16,13.
[40] 1Jo 2,13b.
[41] Cf. Ef 6,10-18.
[42] 1Jo5,4.
[43] Cf Jo 16,33.
[44] 1Jo 2,15.
[45] Cf. Jo 16,11.
[46] Nessa altura abre-se o espaço para uma reflexão de tipo
sóciopolítico.
[47] Cf. 1Jo 2,17.
[48] Ivi.
[50] A sexualidade do ponto de vista da antropologia bíblica é o ponto
mais alto da possibilidade do conhecimento do outro. A pessoa é ao mesmo tempo
carne e espírito. NA sexualidade este momento de encontro chega ao seu cume.
[51] Cf. a definição que Barth dava de religião como máxima expressão de
ateísmo quando a religião é vista como um meio de tirar proveito de Deus,
quando Deus é cobrado para realizar a vontade do homem.
[52] Cf. Comento a primeira carta á João.
[53] Cf. Ez 28, 1-10.
[54] Cf. Mt 19, 23-24.
[55] Cf. Lc 12, 15-21.
[56] Cf. Mt 6,19-21
[57] O tema da vigilância é um tema importante na primeira comunidade
cristã. Prova disso são as cartas de Paulo que em varias circunstâncias falam
deste tema.
[58] Cf. Mt 25, 1-31.
[59] 2 Tm 4,3-4.
[60] Cf. Gal 1,6s.
[61] Cf. 2Pd 3,8.
[62] Sobre este assunto Cf. Lúmen Gentium 14, e também Agostinho.
[63] Pode se fazer uma menção ao Batismo da Igreja primitiva, aonde a
unção era realizada no corpo todo da pessoa.
[64] Cf. Mt 13, 53-56).
[65] Cf. a heresia de Cerinto.
[66] Cf. Rom 1, 19-20.
[67] Muito diferente é o Deus dos filósofos: cf. Aristóteles: Deus como
pensamento de pensamento, que pode pensar só para si mesmo.
[68] Cf. Mc 14,25.
[69] Cf Jo 15, 1-8. O tema da permanência é um tema querido a João. É o
tema do discipulado que vive na presença do Senhor, grudado nele e na sua
palavra. A verdade desta permanência é a fidelidade.
[70] Cf. 2 Tm 3,14; 2 Tm 1,14.
[71] Cf. o texto de Agostinho que, no comento a estes versículos, fala
do mestre interior.
[72] Cf. Rom 13, 11-12; 1Ts 5,2.5.
[73] Cf. Mt 7, 21-23.
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