anotações de Paolo Cugini
Encontro com os crismandos junho 2024
a
ideia de misericórdia conheceu, ao longo da era moderna, um esquecimento
constrangedor, que a levou a abandonar progressivamente a modernidade. Nesta
época, a suspeita de ser inimigo da justiça concentrou-se em torno da
misericórdia, representando assim o principal obstáculo à criação de uma ordem
ética válida para todos. A misericórdia – assim começámos a pensar – teria como
resultado inevitável o desengajamento do homem: não levaria à transformação do
mundo, mas sim à inocência dos algozes, infligindo uma nova injustiça às
vítimas.
Por
outro lado, a desvalorização da misericórdia também encontrou aliados válidos
naqueles sistemas económicos que, ao exaltar o lucro individual, viam a
concorrência como o imperativo fundamental do desenvolvimento económico. Para
este período, é conhecida a obstinação com que Nietzsche atacou a virtude da
misericórdia. Para o autor de O Anticristo, a misericórdia seria uma expressão
de fraqueza, uma disposição perigosa e hostil à vida, indigna do homem forte.
Assim lemos, por exemplo, nas páginas iniciais de O Anticristo: «O Cristianismo
é chamado de religião da compaixão. A compaixão […] atua num sentido
depressivo. Você perde força quando tem compaixão [...]. Nada é mais
prejudicial à saúde, no meio da nossa humanidade doentia, do que a compaixão
cristã."
A
CERTIFICAÇÃO DAS ESCRITURAS
Todas
as Escrituras – tanto o Antigo como o Novo Testamento – falam do amor
preferencial que Deus tem pelo seu povo e, de forma mais geral, por todos os
homens.
para. O
antigo Testamento.
Embora
o termo “misericórdia” ainda não se encontre nas primeiras páginas da Bíblia, a
realidade que ele implica já está amplamente presente. A orientação mais
profunda, típica e original da Bíblia é, sem dúvida, o facto de Deus encontrar
o homem na história e - através das suas acções - entrar em diálogo com ele
como Deus pessoal.
A
ideia de misericórdia, ao contrário, torna-se explícita na segunda revelação do
nome. A Moisés, que deseja conhecer o rosto de Deus, Javé responde com estas
palavras: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade e proclamarei o meu
nome […]. A quem eu quiser ser gracioso, serei gracioso; e a quem eu quiser ter
misericórdia, terei misericórdia” (Êxodo 33:19). Chegaremos a uma terceira
revelação do nome: Javé é um “Deus misericordioso e compassivo, tardio em
irar-se e rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6).
É
significativo observar que – ao nível da própria linguagem – a compaixão e a
misericórdia de Deus são ditas referindo-se a uma terminologia articulada e
complexa que não fecha Deus numa definição, mas propõe sempre e de novo a sua
indefinição. Entre outros, destacam-se sobretudo dois termos que a exegese já
nos habituou a reconhecer e identificar.
O
primeiro, rahamîm , é um plural que indica antes de tudo as vísceras e,
num sentido derivado, a sede dos sentimentos. Refere-se principalmente ao útero
materno e ao sentimento visceral que uma mãe tem por seu filho. O sujeito desta
misericórdia é sempre Deus (cf. Is 55,7; 63,15; Jr 31,20; Os 14,4; Sl 69,17),
enquanto para a relação oposta – a do homem para com Deus – este léxico nunca
ocorre.
Porém,
há também um segundo termo, hesed – usado tanto no contexto profano quanto
em relação a Deus – que indica, entre outras coisas, a benevolência do homem
para com seu próximo ou seu subordinado e a fidelidade a esta atitude, até o
limite da indulgência. e misericórdia. O elemento de disposição favorável da
vontade é inerente a este termo. Para Yahweh, mostrar hesed para com Israel
significa estabelecer livremente com ele uma relação de aliança e permanecer
fiel a ela até ao extremo de cometer violência contra si mesmo para perdoar os
pecados. Indica, portanto, em última análise, um dom que vai além de qualquer
relação mútua de lealdade.
Resumindo:
a santidade de Deus, sendo totalmente diferente do homem, não se manifesta na
ira ou no domínio, mas na misericórdia. A sua transcendência não se afirma no
distanciamento do homem, mas numa familiaridade que surpreende e comove. Por
isso a Bíblia fala muito do coração de Deus que escuta o clamor do homem, se
emociona com ele e até se volta contra si mesmo (cf. Os 11,8).
b. O
Novo Testamento.
Mas
é sobretudo o Novo Testamento que revela a misericórdia como a maior perfeição
de Deus. Aqui a novidade consiste em transferir os traços da misericórdia
divina para a humanidade de Jesus – até mesmo para a carne desfigurada do
crucifixo.
É
sobretudo tarefa das parábolas concentrar-se, por assim dizer, nos traços
inequívocos da misericórdia divina. A do Pai misericordioso (cf. Lc 15, 11-32),
por exemplo, insiste no facto de que a misericórdia vai além de qualquer
direito e de qualquer expectativa.
Esta
misericórdia é ainda melhor ilustrada pela parábola do Bom Samaritano (cf. Lc
10,30-37), um semipagão que, apesar de não ter nenhuma obrigação, vê um homem
vítima de bandidos, sente compaixão por ele, interrompe a sua conversa. negócio
e cuida dele, pagando adiantado (cf. Lc 10,30-35). A interpretação dada pelos
Padres da Igreja é bem conhecida. Viram, no Samaritano, a imagem de Cristo que,
através do burro da sua humanidade, se dispôs a ir ao encontro do homem
roubado, na sequência do pecado, do hábito da graça sobrenatural.
A
tradição cristã – a partir daquela sedimentada nas Escrituras – nunca deixou,
portanto, de indicar a misericórdia de Deus como a sua perfeição original e,
por derivação, como a força motriz de toda a obra da redenção. Com efeito, para
sermos rigorosos, foi precisamente a partir da contemplação da obra da redenção
que identificamos, na misericórdia divina, o próprio coração de Deus.
Igualmente
singular é a afirmação do Novo Testamento segundo a qual o amor de Deus “foi
derramado em nossos corações” (Rm 5,5) através da obra do Espírito. Em resumo:
uma leitura atenta do Novo Testamento leva-nos a atribuir misericórdia, não só
ao Pai, mas ao único Deus. Portanto, em última análise, à Trindade. É a
misericórdia – perfeição última de Deus – o motor de toda a obra da redenção,
que encontra o seu ápice na Páscoa do Filho.
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